O surgimento de Milo J – Camilo Joaquín Villarruel, nascido em 2006 na província de Morón, Buenos Aires, representa um dos movimentos mais intrigantes da nova música latino-americana, a exemplo de artistas de outras regiões, como João Gomes (Brasil), C. Tangano (Espanha) e Bad Bunny (Porto Rico).
Em um cenário dominado por estéticas urbanas globalizadas, beats pasteurizados e identidades sonoras muitas vezes falsamente universais, o jovem argentino conseguiu realizar algo raro, transformar a linguagem do trap e do urbano em matéria viva de memória, de história e de pertencimento.
Com 16 anos, Milo J apareceu como fenômeno precoce, um adolescente de voz suave e introspectiva que explodiu a partir de colaborações de alto alcance, como a “BZRP Music Session #57” – uma das edições da série de colaborações do produtor argentino Bizarrap (BZRP), lançada em 2023, que marcou um momento decisivo na carreira de Milo J.
La vida era más corta, o ponto de virada
O disco lançado em 2025, é um trabalho que revisita a herança musical argentina e latino-americana com coragem estética, intensidade emocional e uma produção moderna que nunca abandona a raiz. No disco, Milo J costura folclore, tango, bossa nova, salsa, rock, eletrônica e texturas acústicas, com habilidade, sensibilidade e profundidade histórica e estética.
Há canções que evocam o espírito do interior, com violões, bombos legueros, cânticos ancestrais, chacareras e ecos de milonga convivendo com ambientações digitais, colagens harmônicas e uma poesia que mescla a vulnerabilidade juvenil com uma consciência rara de mundo atormentado por guerras, incertezas e ausência de futuro para a juventude.
As participações ampliam esse mapa afetivo, de um lado destacando a cantora folclórica Soledad, o cantautor cubano Silvio Rodríguez, os também folcloristas argentinos Cuti e Roberto Carabajal, além da voz de Mercedes Sosa (em áudio recuperado), e, de outro, artistas de sua geração como a chilena AKRIILA, além dos conterrâneos Truneo, Paula Prieto e Radamel, um jovem cantor.
É como se Milo J abrisse um canal entre gerações, conectando seu presente urbano ao cordão umbilical de uma América Latina profunda, que nos remete, guardadas as diferenças, às transformações provocadas por artistas como os “roqueiros” Spinetta, Sui Generis (Charly Garcia & Nito Mestre) e expoentes do folclore como o argentino Horacio Guarany ou a chilena Violeta Parra.
Afirmação cultural como resistência
Suas músicas dialogam com temas que caracterizam um movimento maior na região, retomando o caminho da busca por identidade diante de uma modernidade acelerada, da afirmação cultural como resistência e da valorização das raízes como forma de futuro, de interação com a realidade, e não de nostalgia distante e, por vezes, mofada.
Leia mais: O novo regional global, ou quando a juventude reconecta o folclore ao futuro
Em vez de se dissolver completamente no pop global, essa geração decidiu redescobrir suas próprias raízes, e fazer delas matéria-prima para novas linguagens, novos híbridos e novas afirmações culturais.
É uma estética que se aproxima daquilo que promovemos ao longo de anos, e sugerimos nos tempos pós-pandemia, uma nova rota musical para além dos padrões do soft power cultural imperialista anglo-saxão, produzida por artistas que, longe dos centros tradicionais da indústria, constroem suas próprias sínteses culturais e afetam o continente inteiro.
Nesse contexto, ainda em pleno crescimento, como cantor e compositor, Milo J aponta para um horizonte onde passado, presente e futuro dialogam sem hierarquias, que transforma a juventude em linguagem estética e que recoloca a Argentina mais uma vez no mapa das inovações musicais do continente. i
Aos 19 anos, já opera como um compositor pleno, consciente de sua voz e disposto a ir além do imediatismo algorítmico imposto pelas novas tecnologias e suas plataformas digitais. Ele ressignifica o urbano argentino sem negar sua origem, abrindo espaço para que o gênero se reencontre com a história musical do país.
O disco: um manifesto musical e generacional
Em 25 de setembro de 2025, Milo J lançou “La vida era más corta”, seu terceiro álbum. O disco reúne 15 faixas e durações próximas a 48 minutos, misturando linguagens — trap, folclore, tango, rock e eletrônico, numa proposta que resgata memória, ancestralidade e identidade.
Produzido por Milo J, Tatool e Santiago Alvarado, o álbum conta com colaborações ambiciosas, mas simpáticas ao jovem artista, tanto de nomes contemporâneos quanto de lendas da música latina, como Trueno e Silvio Rodríguez,além da “participação” em áudio de Mercedes Sosa.
A crítica especializada elogiou a maturidade artística do jovem que, mesmo tendo apenas 18 anos (na gravação do disco), teve a coragem de romper com os limites de “promessa do trap”, apostando em uma obra profunda e multifacetada.
No álbum, se destacam canções como Bajo de la piel — que, segundo ele, homenageia sua ancestralidade, com uso de elementos folclóricos, cânticos de povos originários, além de Niño, Luciérnegas (para sua avó) e a emocionante El Invisible, com Cuti e Roberto Carabajal.
Leia mais: O novo regional global, ou quando a juventude reconecta o folclore ao futuro
Ouça abaixo: playlist “Chasqui – Forever young”, com artistas citados na matéria acima

* Com informações de Senhor F, Wikpedia, Rolling Stone-AR e Warner-AR.
Foto: Creative Commons (Milo J en el set de grabación del videoclip “Bajo de la piel”, en Santiago del Estero, Argentina)






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