A música vive hoje uma encruzilhada curiosa. Nunca foi tão fácil publicar, distribuir e acessar sons de qualquer canto do planeta — e nunca foi tão difícil, para esses mesmos sons, sobreviver ao ruído ensurdecedor das plataformas digitais.
A promessa inicial de democracia ilimitada resultou em uma estranha contradição. De um lado, a dispersão infinita da oferta e, de outro, a concentração absurda da atenção. É um faroeste de algoritmos, onde tudo pode acontecer e quase nada realmente acontece.
Alguns flashes de uma reação inesperada
Nesse cenário, uma reação inesperada começou a brotar entre artistas jovens da América do Sul, México, Espanha e até dos Estados Unidos. Em vez de se dissolver completamente no pop global, essa geração decidiu redescobrir suas próprias raízes, e fazer delas matéria-prima para novas linguagens, novos híbridos e novas afirmações culturais.
Não se trata de revivalismo ou purismo. Trata-se de uma renovação criativa, em que o folclore e os gêneros tradicionais se tornam ferramentas estéticas contemporâneas, cruzadas com rap, trap, piseiro, música urbana, indie ou o que mais estiver no ar. O velho se torna futurista; o local vira global.
- O mesmo fenômeno ocorre com a música tropical que desde o início dos anos dois mil, tendo à frente a frente cumbiera bogotana integrada pelos grupos Los Pirañas, Meridian Brothers, Frente Cumbiero, Romperayo e Conjunto Media Luna, entre outros, modernizaram a cumbia e outros gêneros colombianos e tropicais – OUÇA AQUI (playlist Ondas Tropicais – Nuevo Sonido Bogotano & mais)
- No Brasil, o fenômeno é encarnado por João Gomes, talvez o caso mais eloquente dessa mutação. Ele surgiu no rastro do piseiro, nascida da lógica dos paredões e do ultra-compartilhamento e, a partir daí, reabriu as portas para o forró, a música de vaquejada (especialmente de Kara Véia), a tradição nordestina profunda. Um novo Luiz Gonzaga gerado pelo 4G.
- Na Argentina, Milo J é a síntese perfeita do encontro entre as sonoridades urbanas de Buenos Aires — rap, hip hop, trap — e o folclore clássico. O resultado não é um pastiche, é uma reinvenção emotiva, onde o jovem rapper soa tão conectado à internet quanto aos ecos ancestrais do país. O evento/vídeo FAlklore! mostra isso em palavras e som (vejam abaixo).
No México, o movimento tem raízes na rebeldia de Juan Cirerol, que misturou música de bar, corridos, trovadores e marginalidade punk. A partir dessa abertura, artistas como Ed Maverick levaram a canção regional — seca, rústica, visceral — para dentro do universo indie. Apresentação de Cirerol no festival El Mapa de Todos, em 2012, surpreendentemente sinalava a conexão.
- Na Espanha, C. Tangana fez o mundo olhar novamente para o flamenco, mas não da forma tradicionalista. Em parceria com Niño de Elche, ele arrastou o flamenco para o trap, incluindo ainda na mistura Gipsy Kings, Jorge Drexler e Ed Maverick. Algo como fez Camarón de la Isla no disco La leyenda del tiempo, em 1979 – ao contrário, trazendo o pop para o flamenco.
- Mesmo no EUA, Jesse Welles retoma o espírito folk de Bob Dylan, com o violão direto e a estrutura de protesto, para interpretar conflitos atuais, como a ameaça de Trump à Venezuela, fazendo do folk uma arma política reatualizada. E, antes disso, com o single No Kings (ouça na playlist), em alusão direta ao movimento contra o novo ditador imperial.
- E, claro, há Bad Bunny, talvez o maior popstar do planeta, que embute ritmos, expressões e gestualidades do folclore porto-riquenho dentro da música urbana mais tecnológica possível. Ele globaliza Porto Rico sem minimizar sua particularidade, ao contrário, transformando sua identidade em diferencial competitivo.

Um movimento continental (e além)
O traço comum entre todos esses artistas é o mesmo. Em um mundo saturado pela estética globalizada do streaming, eles buscaram singularidade no território, na ancestralidade, nas raízes culturais de seus países.
Mas não é uma volta nostálgica ao passado. É uma reprogramação do passado pelo presente. Os gêneros tradicionais funcionam como plugins emocionais, como bancos de textura e pertencimento que o pop digital não consegue fabricar sozinho.
Estamos diante, portanto, de um novo fenômeno: o surgimento de um “regional global”, o nativo da internet, mas fiel a uma geografia sonora própria.
A tecnologia abriu as portas.
Os algoritmos dispersaram a atenção.
E foram justamente os jovens que voltaram para buscar no folclore o que faltava: sentido, identidade, raiz e, paradoxalmente, inovação.
Extras:
- Editado com IA
Foto: Divulgação/Youtube.






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