A música vive hoje uma encruzilhada curiosa. Nunca foi tão fácil publicar, distribuir e acessar sons de qualquer canto do planeta — e nunca foi tão difícil, para esses mesmos sons, sobreviver ao ruído ensurdecedor das plataformas digitais.

A promessa inicial de democracia ilimitada resultou em uma estranha contradição. De um lado, a dispersão infinita da oferta e, de outro, a concentração absurda da atenção. É um faroeste de algoritmos, onde tudo pode acontecer e quase nada realmente acontece.

O cantor e compositor mexicano Juan Cirerol em apresentação no festival El Mapa de Todos, em 2012.
O rapper Trueno e Milo J cantam ao vivo Zafar, um clássico dos uruguaios La Vela Puerca.

Alguns flashes de uma reação inesperada

Nesse cenário, uma reação inesperada começou a brotar entre artistas jovens da América do Sul, México, Espanha e até dos Estados Unidos. Em vez de se dissolver completamente no pop global, essa geração decidiu redescobrir suas próprias raízes, e fazer delas matéria-prima para novas linguagens, novos híbridos e novas afirmações culturais.

Não se trata de revivalismo ou purismo. Trata-se de uma renovação criativa, em que o folclore e os gêneros tradicionais se tornam ferramentas estéticas contemporâneas, cruzadas com rap, trap, piseiro, música urbana, indie ou o que mais estiver no ar. O velho se torna futurista; o local vira global.

  • O mesmo fenômeno ocorre com a música tropical que desde o início dos anos dois mil, tendo à frente a frente cumbiera bogotana integrada pelos grupos Los Pirañas, Meridian Brothers, Frente Cumbiero, Romperayo e Conjunto Media Luna, entre outros, modernizaram a cumbia e outros gêneros colombianos e tropicais – OUÇA AQUI (playlist Ondas Tropicais – Nuevo Sonido Bogotano & mais)
João Gomes realiza o primeiro evento do Tiny Desk Brasil, inaugurando a série criada em 2008.
  • No Brasil, o fenômeno é encarnado por João Gomes, talvez o caso mais eloquente dessa mutação. Ele surgiu no rastro do piseiro, nascida da lógica dos paredões e do ultra-compartilhamento e, a partir daí, reabriu as portas para o forró, a música de vaquejada (especialmente de Kara Véia), a tradição nordestina profunda. Um novo Luiz Gonzaga gerado pelo 4G.
Acompanhado de Los Campedrinos, Milo J canta no evento FAlklore, em Buenos Aires, em 2025.
  • Na Argentina, Milo J é a síntese perfeita do encontro entre as sonoridades urbanas de Buenos Aires — rap, hip hop, trap — e o folclore clássico. O resultado não é um pastiche, é uma reinvenção emotiva, onde o jovem rapper soa tão conectado à internet quanto aos ecos ancestrais do país. O evento/vídeo FAlklore! mostra isso em palavras e som (vejam abaixo).
O cantor e compositor mexicano Ed Maverick canta seu clássico Fuentes de Ortiz,ao vivo.

No México, o movimento tem raízes na rebeldia de Juan Cirerol, que misturou música de bar, corridos, trovadores e marginalidade punk. A partir dessa abertura, artistas como Ed Maverick levaram a canção regional — seca, rústica, visceral — para dentro do universo indie. Apresentação de Cirerol no festival El Mapa de Todos, em 2012, surpreendentemente sinalava a conexão.

C. Tangana canta Tu me dejaste de querer, do álbum El Madrileño, junto com Niño de Elche.
  • Na Espanha, C. Tangana fez o mundo olhar novamente para o flamenco, mas não da forma tradicionalista. Em parceria com Niño de Elche, ele arrastou o flamenco para o trap, incluindo ainda na mistura Gipsy Kings, Jorge Drexler e Ed Maverick. Algo como fez Camarón de la Isla no disco La leyenda del tiempo, em 1979 – ao contrário, trazendo o pop para o flamenco.
Jesse Weller atualiza o protesto sessentista de Bob Dylan e denuncia as agressões de D. Trump.
  • Mesmo no EUA, Jesse Welles retoma o espírito folk de Bob Dylan, com o violão direto e a estrutura de protesto, para interpretar conflitos atuais, como a ameaça de Trump à Venezuela, fazendo do folk uma arma política reatualizada. E, antes disso, com o single No Kings (ouça na playlist), em alusão direta ao movimento contra o novo ditador imperial.
O portoriquenho Bad Banny explodiu mundialmente ao cantar seu povo e sua raça.
  • E, claro, há Bad Bunny, talvez o maior popstar do planeta, que embute ritmos, expressões e gestualidades do folclore porto-riquenho dentro da música urbana mais tecnológica possível. Ele globaliza Porto Rico sem minimizar sua particularidade, ao contrário, transformando sua identidade em diferencial competitivo.
Playlista com canções dos artistas citados na matéria, produzida por Senhor F Social Club.

Um movimento continental (e além)

O traço comum entre todos esses artistas é o mesmo. Em um mundo saturado pela estética globalizada do streaming, eles buscaram singularidade no território, na ancestralidade, nas raízes culturais de seus países.

Mas não é uma volta nostálgica ao passado. É uma reprogramação do passado pelo presente. Os gêneros tradicionais funcionam como plugins emocionais, como bancos de textura e pertencimento que o pop digital não consegue fabricar sozinho.

Estamos diante, portanto, de um novo fenômeno: o surgimento de um “regional global”, o nativo da internet, mas fiel a uma geografia sonora própria.

A tecnologia abriu as portas.

Os algoritmos dispersaram a atenção.

E foram justamente os jovens que voltaram para buscar no folclore o que faltava: sentido, identidade, raiz e, paradoxalmente, inovação.

Extras:

O gaiteiro gaúcho Gilberto Monteiro, acompanhado de Gustavo Garoto e Sucinta Orquestra.
  • Editado com IA

Foto: Divulgação/Youtube.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Trending