O maestro Rogério Duprat nunca escondeu as influências de John Cage sobre a obra que ele produziu com os Mutantes, como falou na entrevista para a Senhor F, em 2000 (em breve, republicaremos aqui, em áudio). Uma das biografias de Paul McCartney, por sua vez, também destaca as relações do velho Macca – quem diria? – com os concretistas, especialmente com John Cage. E também biografia dos americanos Velvet Underground mostra John Cale ligado nos músicos de vanguarda, entre eles, novamente Cage.

Músico concretista que nada tinha a ver com o rock, o americano John Cage (1912-1992) – visite o site oficial – funcionou como uma espécie de elo invisível da vanguarda musical do universo roqueiro dos anos sessenta. Se suas idéias eram para um pequeno universo de eruditos, músicos como Frank Zappa, Paul McCartney, Rogério Duprat e John Cale trataram de utilizá-las para implodir fronteiras musicais e qualificar o som pop. No caso de Duprat, a constatação evidencia o papel de vanguarda mundial que o maestro, os Mutantes e os tropicalistas ocuparam na revolução sonora dos anos sessenta.

Na Inglaterra, Paul McCartney tinha em John Cage um amigo e principal fonte de informação e pesquisa entre os músicos modernos, o que resultou em músicas como “A Day In The Life”. Nos EUA, Frank Zappa com o Mothers Of Invention, e John Cale, com o Velvet Underground, que foram seus alunos em épocas distintas, levaram seus ensinamentos ao extremo. E no Brasil, o maestro Rogério Duprat, com os Mutantes, principalmente, também colocou em prática suas idéias de música “ocasional” e de “happening”, aprendidas no convívio com os “cagistas”, na Alemanha, em 1961.

No caso brasileiro, o contato direto não existiu, mas a aplicação dos métodos concretistas ocorreu com mais intensidade e quantidade, por parte do maestro Rogério Duprat. De forma especial nos três primeiros discos dos Mutantes, a profusão de idéias, de arranjos, de utilização de sons e barulhos tem comparação apenas nas obras de Frank Zappa & Mothers of Invention. Músicas como “Panis et Circenses” (com seu happening-jantar, no meio da canção) e “Chão de Estrelas” (com seus sons incidentais) com os Mutantes, ou, ainda, “Irene”, com Tom Zé, onde o maestro lança mão do “piano preparado” de Cage, são exemplos disso.

Além das experimentações do maestro Duprat com os tropicalistas, e de Damiano Cozzella com Ronnie Von, a música incidental e concretista está presente em vários momentos da música brasileira, além do rock. Na Jovem Guarda, por exemplo, sons variados, aém da música, podem ser ouvidos em “Rua Augusta” (Ronnie Cord), “Parei na Contramão” (Roberto Carlos) e “Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones (Os Incríveis)”. Na MPB, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Walter Franco e Gal Costa também lançaram mão de sons incidentais em produções mais radicais.

  • Senhor F produziu uma playlist com vários desses momentos especiais – ouça aqui.

Veja a lista:

1 – Rua Augusta – Ronnie Cord
2 – Parei na contra mão – Roberto Carlos
3 – Panis et circensis – Os Mutantes
4 – Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones – Os Íncriveis
5 – Parque industrial – Gilbertio Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes
6 – Chão de estrelas – Os Mutantes
7 – A noite do meu bem – Tom Zé
8 – Anarquia – Ronnie Von
9 – Mil novecentos e além – Ronnie Von
10 – 2001 (Dois mil e um) – Os Mutantes
11 – Ando meio desligado (versão compacto) – Os Mutantes
12 – Objeto semi-identificado – Gilberto Gil
13 – Objeto sim, objeto não – Gal Costa
14 – Irene (c/piano preparado) – Tom Zé
15 – Não identificado – Gal Gosta
16 – Me deixe mudo – Walter Franco
17 – Acrilirico – Caetano Veloso
18 – Épico – Caetano Veloso
19 – Tijolinhos, material de construção – Walter Smetak
20 – Deus lhe pague – Chico Buarque de Hollanda
21 – Construção – Chico Buarque de Hollanda
22 – Módulo lunar – Os Brazões
23 – Aqui é o país do futebol – Milton Nascimento
24 – É proibido proibir (c/ambiente de festival) – Caetano Veloso, Os Mutantes

Discípulo de Varese e herói dos roqueiros

A partir dos anos cinqüenta, John Cage torna-se o mais conhecido seguidor do francês Edgar Varese, que introduziu a idéia de transformar “barulho” e “ruídos” incidentais em música, entre outras iniciativas nada convencionais. Uma das obras mais famosas de Cage é “4’33”, escrita para piano, mas sem uma única nota do instrumento, apenas o abrir e fechar da tampa, barulhos da platéia e do ambiente externo, como tossidelas, ruídos de trânsito, buzinas e sirenes. Outra dessas idéias oriundas do manual concretista, utilizadas por George Martin e os Beatles em Sgt Pepper’s era utilizar fitas pré-gravadas,depois recortadas e remontadas aleatoriamente em pequenos pedaços (sons de circo em “Being For The Benefit of Mr. Kite”).

“De todos os compositores modernos cuja obra Paul (McCartney) veio a conhecer naquele período, John Cage foi quem mais o influenciou”, diz Barry Miles, autor de “Many Years From Now”, que traz a biografia do ex-Beatles. Já em “Paz, Amor & Sgt Pepper’s”, George Martin conta que “Paul andava ouvindo um bocado de música de vanguarda, de gente como John Cage, Stockhausen e Luciano Berio, e disse a John que gostaria de incluir uma passagem instrumental com aquele clima vanguardista (“A Day In The Life”). Além da música, a relação de Paul e Cage está registrada em “Notations”, uma seleta de partituras, que incluía cópia final e multicolorida de The Word, presente de Yoko Ono ao músico.

No livro “Uma Nova História da Música”, Otto Maria Carpeaux destaca que os discípulos americanos de Varese avançaram em seu experimentalismo. Enquanto o francês ainda utilizava instrumentos convencionais, mesmo para produzir música não convencional, músicos como Henry Cowell e, especialmente, John Cage, foram mais longe. Passaram a “maltratar” (expressão de Carpeaux) os instrumentos, como fez Cage com o seu “piano preparado” – cordas, borracha e metais sobre as cordas – para o qual compôs dezesseis sonatas e um concerto com Orquestra.

Para John Cale, o parceiro de Lou Reed no Velvet Underground – talvez a influência mais citada, depois dos Beatles – a relação com John Cage, fez com que ele se mudasse para Nova York, em 1963. Na biografia da banda (de autoria de Christian Fevret), Cale afirma sua paixão pelo músico: “A maioria dos músicos clássicos tinha uma grande insegurança no que dizia respeito à sua livre expressão. O maestro dizia-lhes sempre como executar uma peça. É então que aparece Cage, e nos entrega uma folha com pontos e diagramas e nos oferece a liberdade de tocar como preferirmos”, diz ele. Os discos do Velvet Underground, marcados pela distorção dos instrumentos de cordas, quase beirando a atonalidade, confirmam que John Cale também aprendeu e, principalmente, aplicou as lições do mestre a seu jeito.

Assim como Cale, Frank Zappa, que talvez mais tenha utilizado as idéias concretistas, pagaram tributo formalmente ao mestre, participando do CD-duplo “A Chance Operation – The John Cage Tribute (1993)”, com participação de outros músicos populares, como Yoko Ono e Laurie Andersen. “Você não precisa gostar de alguma coisa para ser influenciado por ela”, disse John Lennon na época, comentando as, hoje surpreendentes, relações de Paul McCartney com aqueles músicos estranhos. Uma relação tão improvável, quanto produtiva – hoje transparente – que acionou verdadeiras usinas criativas em Londres, Los Angeles, Nova York e São Paulo, gerando a nova música do Século XX.

Matéria (com revisão e atualização) originalmente públicada na Senhor F vs 2000.

Foto: johncage.org

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